Alcoolismo: o Maior Problema de Saúde Pública

O uso do álcool impõe às sociedades de todos os países uma carga global de agravos
indesejáveis e extremamente dispendiosos, que acometem os indivíduos em todas os
domínios de sua vida. A reafirmação histórica do papel nocivo que o álcool nos oferece deu
origem a uma gama extensa de respostas políticas para o enfrentamento dos problemas
decorrentes de seu consumo, corroborando assim o fato concreto de que a magnitude da
questão é enorme, no contexto de saúde pública mundial.
O diagnóstico e o tratamento precoces da dependência ao álcool têm papel fundamental
no prognóstico deste transtorno, o que se amplia em uma perspectiva global de prevenção
e promoção da saúde, e se agrava ao constatarmos que, de uma forma geral, há despreparo
significativo e desinformação das pessoas que lidam diretamente com o problema, sejam
elas usuários, familiares, sejam profissionais de saúde.
Aproximadamente 20% dos pacientes tratados na rede primária bebem em um nível
considerado de alto risco, pelo menos fazendo uso abusivo do álcool. Estas pessoas têm
seu primeiro contato com os serviços de saúde por intermédio de clínicos gerais. Apesar
disso, estes pouco detectam a presença de acometimento por tal uso, o que tem
repercussão negativa sobre as possibilidades de diagnóstico e tratamento. Vemos que, no
geral, o foco da atenção está voltado para as doenças clínicas decorrentes da dependência
– que ocorrem tardiamente – e não para a dependência subjacente.
Os fatos acima assumem importância maior dentro de um contexto preventivo, ao
considerarmos que, via de regra, o período médio entre o primeiro problema decorrente do
uso de álcool e a primeira intervenção voltada para este problema é de 05 anos; a demora
para iniciar o tratamento e a sua inadequação pioram o prognóstico. Dentre inúmeros fatores
de influência sobre a ineficácia da assistência disponível, consideramos sobremaneira a
crença errônea de que os pacientes raramente se recuperam, sendo um fator decisivo para
tanto a falta/oferta de um currículo relativo a abordagem do uso de álcool e drogas que seja
minimamente suficiente, pelas faculdades de medicina; ampliamos a questão para as
instituições de ensino fo rm a d o ras de outros profissionais de saúde, na desejáve l
possibilidade de abordagens multiprofissionais para os consumidores.
Ainda de forma relativa aos profissionais de saúde, existem diversos impedimentos para
diagnosticar, tratar ou encaminhar as pessoas que apresentam complicações decorrentes
do consumo de álcool. Em um plano cognitivo, os trabalhadores de saúde apresentam a falta
de conhecimentos sobre a variedade de apresentações sintomáticas gerados pelo uso
abusivo e pela dependência ao álcool, bem como de meios para facilitar o seu diagnóstico.
Apresentam também uma visão negativa do paciente, e de suas perspectivas evolutivas
frente ao problema, o que impede uma atitude mais produtiva.
D evemos considerar que a não-compreensão fenomenológica da re s i s t ê n c i a
freqüentemente apresentada pelos pacientes provoca nestes profissionais respostas pouco
acolhedoras, o que se agrava na perspectiva de que a necessidade de acolhimento,
enquanto estratégia facilitadora de abordagem, motivação, e aderência a qualquer proposta
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de cuidados, é fundamental. Tal acolhimento, em qualquer nível assistencial (especializado
ou não-especializado), deve estar disponível no momento em que a sua necessidade se
impõe, uma vez que a ambivalência, a flutuação motivacional e o imediatismo fazem parte
da apresentação costumeiramente evidente naqueles que procuram os serviços de saúde,
devido às conseqüências do seu consumo alcoólico. Podemos ainda apontar como
impedimento o conceito normalmente abraçado pelos profissionais de saúde de que não
possuem qualquer responsabilidade ou competência sobre o diagnóstico e tratamento da
dependência ao álcool, em uma evidente demonstração de estigma, exclusão e preconceito.
Ao analisarmos alguns dados correlatos e relativos aos custos decorrentes, vemos que
os custos decorrentes do consumo de álcool são de grande magnitude. Considerando dados
referentes ao ano de 2001 (DATASUS, 2001), tivemos no Brasil 84.467 internações para o
tratamento de problemas relacionados ao uso do álcool, mais de quatro vezes o número de
internações ocorridas por uso de outras drogas. No mesmo período, foram emitidas 121.901
AIHs para as internações relacionadas ao alcoolismo. Como a média de permanência em
internação foi de 27,3 dias para o período selecionado, estas internações tiveram em 2001
um custo anual para o SUS de mais de 60 milhões de reais.
Estes números não incluem os gastos com os tratamentos ambulatoriais, nem com as
internações e outras formas de tratamento de doenças indiretamente provocadas pelo
consumo do álcool, como aquelas que atingem os aparelhos digestivo e cardiovascular,
câncer (principalmente hepático, de estômago e de mama), deficiências nutricionais,
doenças do feto e recém-nato da mãe alcoolista, as doenças neurológicas e o agravamento
de outras doenças psiquiátricas provocado pelo álcool, assim como os agravos decorrentes
de acidentes ou violência, o que se aplica a todos os povos. Pesquisa realizada pelo Instituto
Nacional de Abuso de Álcool e Drogas dos EUA (1997) revelou que o uso excessivo de
bebida estava presente em 68% dos homicídios culposos, 62% dos assaltos, 54% dos
assassinato e 44% dos roubos ocorridos. De forma relativa à violência doméstica, a mesma
pesquisa evidenciou que 2/3 dos casos de espancamento de crianças ocorrem quando os
pais agressores estão embriagados, o mesmo ocorrendo nas agressões entre marido e
mulher. No Brasil, pesquisa realizada pelo CEBRID (1996) informou que na análise de mais
de 19.000 laudos cadavéricos feitos entre 1986 e 1993 no IML de cada 100 corpos que
deram entrada vítimas de morte não natural, 95 tinham álcool no sangue.
Ainda de acordo com o DATASUS, e considerando o período compreendido entre 2001 e
novembro de 2003, verificamos que o maior percentual de gastos é decorrente do uso
indevido de álcool – 84,5%; contra 14,6% de gastos oriundos no consumo de outras
substâncias psicoativas.
MORBIDADE HOSPITALAR NO SUS
Transtornos mentais decor rentes do uso de álcool e outras substâncias
psicoati vas – 2002 até abril de 2004
MORBIDADES – CID 10 Valor Total (R$) (%)
Transtornos mentais e comportamentais
devido ao uso de álcool 142.646.007,46 83%
Transtornos mentais e comportamentais devido ao uso
de outras substâncias psicoativas 29.098.956,61 17%
Total Gastos Anuais 171.744.964,07 100%
Fonte: DATASUS, Ministério da Saúde.
A Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogras 17
Os dados confirmam o consenso mundial de que as intervenções voltadas para minimizar
os custos do gasto indevido de substâncias psicoativas devem dedicar atenção especial às
drogas de uso lícito, especialmente o álcool.Poucos consumidores (os mais acometidos, em
verdade) recebem atenção do sistema de saúde em dispositivos de atenção extra-hospitalar
especializada (ainda pouco disponível) ou em nível de atenção básica; a atenção hospitalar
no Brasil, componente de um modelo iatrogênico, ultrapassado e excludente de oferta de
cuidados, não contempla as necessidades da maioria dos indivíduos que têm poucos
problemas com o álcool, os quais constituem parcela maior da população de consumidores
– portanto, com maior probabilidade e risco para desenvolver problemas mais graves,
devendo ser alvo de intervenções preventivas, o que não deve ser absolutamente ignorado,
d e n t ro de uma pers p e c t iva de saúde públ i c a . Desta fo rm a , p revenção precoce e
intervenções breves podem ter efeitos benéficos que ultrapassam as suas populações-alvo.
A oferta de cuidados extra-hospitalares, inseridos na comunidade e complementados por
outros programas assistenciais, promove condições para a reversão deste panorama.
Repensar as formas de cuidar destas pessoas deve contemplar formas de intervenção
precoce, dentro de uma perspectiva lógica de redução de danos, o que teria impacto
altamente positivo sobre a carga global de problemas e sobre o custo direto e indireto
associado ao consumo de álcool.
Desta forma, uma política nacional de atenção à saúde, de forma relacionada ao
consumo de álcool, implica a implementação da assistência, ampliando a cobertura e o
espectro de atuação do Programa Nacional de Atenção Comunitária Integral a Usuários de
Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde, o qual contempla a assistência a pessoas
com problemas relacionados ao uso do álcool e seus familiares. A assistência a usuários de
álcool deve ser oferecida em todos os níveis de atenção, privilegiando os cuidados em
dispositivos extra-hospitalares, como o Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas
(CAPS ad), devendo também estar inserida na atuação do Programa de Saúde da Família,
Programa de Agentes Comunitários de Saúde, Programas de Redução de Danos e da Rede
Básica de Saúde.
Também é fundamental aperfeiçoar a assistência dos casos de maior gravidade nos
dispositivos de saúde que demandem por cuidados mais específicos em dispositivos de
maior complexidade, como os serviços de emergências médicas (geral e emergência
psiquiátrica), principalmente para o atendimento de urgências como os quadros de
intoxicação ou abstinência graves e outros transtornos clínicos e psiquiátricos agudos; o
mesmo deve ocorrer em hospitais psiquiátricos e hospitais gerais.
Quanto à capacitação, devem ser ampliadas as atividades do Programa Permanente de
Capacitação de Recursos Humanos para os Serviços de Atenção aos Usuários de Drogas
na Rede do SUS do Ministério da Saúde, capacitando não apenas os profissionais que
atuarão nos CAPS ad, como também os que atuam nas demais unidades assistenciais,
atividade também extensiva ao PSF e PACS, contemplando também a capacitação para
profissionais de nível médio que atuem na assistência aos problemas relacionados ao uso
do álcool. É fundamental o desenvolvimento, em ação conjunta com o Ministério da
Educação, a modificação do currículo dos cursos de graduação na área da saúde, exigindo
a abordagem dos problemas relacionados ao uso do álcool.
Quanto à prevenção, é essencial capacitar as equipes de saúde da família e prover os
subsídios necessários para o desenvolvimento de ações de prevenção primária do uso
prejudicial do álcool, para o diagnóstico precoce, desenvolvimento de ações de redução de
danos, tratamento de casos não complicados e referenciamento para a rede de assistência
dos quadros moderados e graves.
Deve ser estimulado o desenvolvimento de ações de prevenção em escolas, locais de
t rab a l h o, s i n d i c atos e outras associações. As ações incentivadas devem ter caráter
p e rm a n e n t e, ao invés de iniciat ivas pontuais e esporádicas, como campanhas, sem no entanto
p rescindir de ações de curta duração voltadas para a multiplicação da atuação preve n t iva .
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Educar a população é fundamental, pois promove a redução dos obstáculos relativos ao
ao tratamento e à atenção integral voltada para os consumidores de álcool, aumentando a
consciência coletiva sobre a freqüência dos transtornos decorrentes do uso indevido de
álcool e drogas. As opções de atenção disponíveis e seus benefícios devem ser amplamente
divulgados.
As respostas da população em geral, dos profissionais, da mídia, dos formuladores de
políticas e dos políticos devem refletir os melhores conhecimentos disponíveis. Campanhas
de educação e sensibilização, bem orga n i z a d a s, re d u zem a discriminação e a
estigmatização, e fomentam o uso dos serviços disponíveis. Desta forma, as atividade
preventivas também devem ser orientadas ao fornecimento de informações e discussão dos
problemas provocados pelo consumo do álcool, sempre tendo em mente a estratégia de
redução de danos, tendo ainda como fundamento uma visão compreensiva do consumo do
álcool como fenômeno social, e ao mesmo tempo individual.
Quanto à mídia, uma política para redução de danos relacionados ao consumo de álcool
deve necessariamente propor modificação na legislação na direção da proibição da
propaganda de bebidas alcoólicas em meios de comunicação de massa. A propaganda deve
ficar restrita aos locais de venda (bares, prateleiras de supermercado, etc.), como já é feito
no Brasil para o tabaco. Os veículos de comunicação de massa devem ser incentivados a
realizar campanhas de redução dos danos à saúde provocados pelo consumo do álcool. O
eixo norteador de campanhas pela redução dos problemas provocados pelo álcool deve ser
a estratégia de redução de danos, devendo haver a crítica de estereótipos relacionados ao
uso do álcool, e incentivados pela propaganda de bebidas alcoólicas, como a associação do
uso do álcool com a virilidade, a sensualidade, a diversão etc. Produtores, distribuidores e
estabelecimentos que vendem bebidas devem ser implicados no desenvolvimento da
campanha de prevenção, por meio de suas associações.
Quanto ao controle social dos danos à saúde relacionados ao uso do álcool, deve ser
fomentado o debate público em várias instâncias de modo a viabilizar o controle social sobre
os danos à saúde e relacionados ao consumo de bebidas alcoólicas. Este debate deve
abordar medidas como a revisão da taxação de bebidas alcoólicas por meio de imposto que
seria destinado ao custeio de assistência e prevenção dos problemas relacionados ao uso
do álcool, bem como por discussão, implantação e implementação das propostas constantes
no Relatório Final da III Conferência Nacional de Saúde Mental (III CNSM, 2001) e do
Seminário Internacional de Redução de Danos em Álcool, realizado em Recife, em
setembro de 2002.
As discussões sobre o controle social e político do álcool devem combater argumentos
mais liberais, os quais preconizam que a oferta e a demanda do álcool deveria ser algo que
o próprio mercado deveria regular; que no Brasil temos controle em demasia, e que não
necessitaríamos de mais um controle sobre esse pro d u t o, sendo também pouco
democrático fazermos controle de um produto que é legalizado.
Pa ra tanto, d evem-se utilizar fo rtes contra - a rg u m e n t o s, no sentido de que são ex at a m e n t e
os países mais desenvolvidos do ponto de vista democrático que aumentam a cada dia o
c o n t role social sobre o álcool. É necessário priv i l egiar o interesse da sociedade em pro t ege rse
dos danos causados pelo álcool, em face do interesse da indústria de beb i d a s, s e n d o
p o rtanto imperat ivo um exe rcício menos tímido e mais eficaz do controle social, no sentido de
implementação das propostas que configurem uma política pública re l at iva ao uso de álcool.